Ateísmo e Consciência Expandida
Vivemos em uma era de esvaziamento simbólico. A religião tradicional, marcada por dogmas e submissão, já não dá conta das angústias contemporâneas. Por outro lado, o racionalismo secular também não oferece respostas ao vazio existencial que atravessa os sujeitos. Neste abismo entre fé e razão, surge uma outra via: a da experiência sensível radical, provocada por substâncias enteógenas como a psilocibina, o LSD e a cannabis. Não se trata de fuga da realidade, mas de uma reconexão com o real — mais densa, mais rica e mais humana.
Walter Benjamin, ao escrever sobre suas experiências com haxixe, nos oferece uma chave de leitura fundamental: “as coisas mais banais tornam-se profundas, e os objetos revelam aquilo que em si contêm de eterno” (BENJAMIN, 1994, p. 47). Ao relatar a quebra da percepção ordinária, Benjamin nos convida a pensar uma espiritualidade que não se refere ao céu, mas ao cotidiano redimensionado — repleto de significado e potência simbólica. O enteógeno age, então, como catalisador da ruptura com o automatismo capitalista da vida.
Feuerbach, ao dizer que Deus é a projeção das qualidades humanas absolutizadas, já preparava o terreno para essa espiritualidade ateia. A experiência com enteógenos, longe de confirmar uma divindade externa, traz de volta ao centro a subjetividade humana como lugar do sagrado. A comunhão não é com o divino, mas com a interioridade, com o outro e com a natureza — todos desalienados e reintegrados em uma mesma vibração sensível.
Ernst Bloch, em sua filosofia da esperança, nos lembra que todo sujeito carrega o desejo do “ainda-não”. Essa tensão utópica, latente em cada um, encontra no uso ritualizado e consciente dos enteógenos um canal de manifestação. Não é coincidência que muitas dessas experiências evoquem visões de fraternidade, justiça e dissolução das fronteiras egoístas. Trata-se, portanto, de um impulso materialista à utopia — não como crença no além, mas como reinvenção do agora.
Mesmo Karl Marx, que denunciou a religião como “ópio do povo”, também compreendeu que “a miséria religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto contra essa miséria” (MARX, 2004, p. 139). A espiritualidade enteógena que aqui propomos é, portanto, um protesto contra a miséria simbólica e sensorial do capitalismo, uma forma de reapropriação da totalidade da existência. O ateu que passa por essa experiência não se torna crente; torna-se sensível, ético, atento — e talvez mais revolucionário.
Espiritualidade, então, não precisa ser sinônimo de fé ou de religião. Ela pode ser, sim, a experiência da vida em sua densidade plena, provocada por ferramentas ancestrais que os povos originários sempre utilizaram com sabedoria e respeito. Trata-se de reintegrar o corpo, o sensível, o delírio e o sonho à práxis. Não como alienação, mas como despertar materialista para a beleza e a dor do mundo — sem véus, sem dogmas e sem promessas de céu.
Prof. Ronaldo Marcelo
Referências
BENJAMIN, Walter. Sobre haxixe. Trad. João Barrento. São Paulo: Autêntica, 1994.
BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélson Coutinho. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. 3 v.
FADIMAN, James. The Psychedelic Explorer’s Guide: Safe, Therapeutic, and Sacred Journeys. Rochester: Park Street Press, 2011.
FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Trad. José Tavares de Oliveira. São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.
OTT, Jonathan. Pharmacotheon: Entheogenic Drugs, Their Plant Sources and History. Kennewick: Natural Products Co., 1993.
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