Autoridade, Disciplina e o Colapso da Função Educativa

 


Contribuições Sociológicas à Compreensão da Crise Escolar Contemporânea

Por Prof. Marcelo Pacce

A escola, como instituição social historicamente situada, constitui-se enquanto espaço privilegiado de produção e transmissão de saberes sistematizados, subordinada, no entanto, à mediação de regras, limites e práticas disciplinares. Tal configuração institucional foi sendo desestruturada ao longo das últimas décadas sob o impacto de transformações profundas na ordem social, econômica e cultural. Não se trata de um fenômeno espontâneo, mas da corrosão deliberada de princípios organizadores da autoridade docente e da função educativa.

Na esteira das análises de Norbert Elias sobre o processo civilizador, compreendemos que a autoridade não é um dado natural, mas uma construção social progressiva, associada ao autocontrole e à internalização de normas que regulam as relações interpessoais (ELIAS, 1994). No entanto, ao contrário do que sugerem interpretações mais flexíveis da chamada “horizontalização” das relações, a crise da autoridade escolar não decorre apenas da mutação dos códigos normativos, mas de um esgarçamento consciente da legitimidade simbólica da escola, em favor de uma sociabilidade regida pela lógica mercantil, do consumo e da performance individualista.

A disciplina, enquanto condição ontológica da aprendizagem, é frequentemente desqualificada sob discursos que confundem autoritarismo com estrutura normativa. Essa confusão fragiliza a escola e entrega o processo educativo ao improviso, à permissividade e à desresponsabilização generalizada. A juventude contemporânea é imersa desde cedo em ambientes nos quais a gratificação imediata substitui o esforço metódico; onde a autoridade é ridicularizada e onde o saber é tratado como algo acessório, secundário ou irrelevante.

A crise da família como instância mediadora da socialização primária é outro vetor que interfere diretamente nas dinâmicas escolares. As rupturas nos vínculos parentais, a ausência de coesão normativa no espaço doméstico e a negação dos papeis disciplinares por parte dos responsáveis comprometem a interiorização dos limites básicos de convivência. Como observa Durkheim, a moralidade escolar pressupõe um grau mínimo de predisposição à obediência e à disciplina – sem o qual o processo educativo degenera (DURKHEIM, 1999). Não há mediação pedagógica eficaz possível diante de sujeitos que não reconhecem nenhuma legitimidade na figura do educador.

A convivência escolar pressupõe não apenas a presença física, mas a disponibilidade psíquica para o aprendizado. O desprestígio simbólico da docência, associado à precarização material da escola pública e à banalização do saber, transforma a figura do professor em alvo de escárnio e violência. A indisciplina não se limita ao comportamento desordeiro; ela é expressão de um projeto social mais amplo de desestruturação dos espaços coletivos, promovido pelo neoliberalismo e sua racionalidade antipedagógica, que transforma tudo em mercadoria — inclusive a escola.

Conforme aponta Bauman (2001), na sociedade líquida os vínculos duráveis, como o respeito institucional, são substituídos por relações descartáveis e utilitaristas. Tal lógica se infiltra na escola através de práticas pedagógicas que cedem às pressões imediatistas, às vontades individuais e à infantilização da autoridade. Assim, forma-se um ciclo de dissolução institucional: a escola não exige disciplina, o aluno não reconhece autoridade, o professor perde sua centralidade e o saber se esvazia como conteúdo formador.

Ao aceitarmos tais práticas como “naturais” ou como “expressões culturais da juventude contemporânea”, caímos em uma armadilha ideológica: a de que a escola deve adaptar-se à desordem, e não o contrário. Contra essa tendência, é necessário afirmar a disciplina como valor formador, a autoridade como mediação necessária e a docência como função estrutural da sociedade.


Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. São Paulo: EPU, 1999.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

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